Palíndromos

Mãos que desenham, bordam, cooperam, escrevem. Cerrado é apertado, é bioma em extinção, mas não fecha porque a memória não deixa. Suas flores ornamentam os quadros da sala, o bordado dos tecidos, a tessitura da vida: Solanum lycocarpum, Xilopia aromática, Jacaranda sp, Ana-flor. Celma me recebe, palíndromo ouvinte e escrevente, no andar de cima da Associação de Moradores do Conjunto Caiçara. Há 25 anos o Conjunto Caiçara virou morada e trabalho. Há 8, criou o Instituto Ana Carol, de onde nasceu Bordana, onde mãos, mães, mulheres fixam linhas em tecidos brancos de ausência presente.

Há 25 anos trouxe palíndromo Ana também Carolina do ventre para o berço do Cerrado. A militância veio junto por impulso que emana e necessidade que requer. Celma conta sobre o antes e o depois que se vestem de agora. Desde dezembro de 2007 e em todos os dezembros, Cerrado aflora com mais intensidade e ganha Ana-flor. Um tipo raro de leucemia vestiu o agora e o depois de ausência e levou consigo Carol. Dez mulheres se reuniram na casa de Celma depois do afloramento para criar a Bordana, por impulso que emana e necessidade que requer.


No topo da escada, o patamar é de Ana; fotos e desenhos preenchem as paredes da antessala onde Márcia, me cumprimenta com sorriso e óculos de aro preto. Na sala de Celma, mãos cumprimentam e abraços são trocados. Palíndromo escrevente se apresenta: “Anna Carolina”. A surpresa perpassa os olhos apenas por um instante, dando lugar a outro abraço. Sobre a mesa, panfletos de atividades da Bordana, revistas de bordado; no canto direito da sala, bordado transborda com sacolas e bolsas confeccionadas à mão para venda na Feira do Cerrado, onde todos os domingos a Feira do Cerrado é palco de exposição de produtos artesanais.
           
    As mãos de Celma não bordam, escrevem. Era sábado, quinze dias após o que não pode ser compreendido ainda martelar na memória. Ausência - substantivo feminino: afastamento temporário de alguém do domicílio, dos lugares que frequenta. Pela tv, Luciano Huck entrevista mais uma participante do quadro Lata Velha. Sentada em frente ao computador, Celma monta um quebra-cabeça mental, tentativa de juntar pedacinhos de sonhos e desejos de palíndromo Ana-flor em um todo que virasse ação. O jogo lúdico infantil se torna um resgate de sentido para a vida. Sequestro doloroso que fez pedacinhos do todo, cisão que demanda remição, quebra-cabeça a ser juntado por impulso que emana e necessidade que requer.

    Celma trabalha fora, Domícia, dentro. Cuidar de Carol é privilégio porque tempo é rude e inflexível, não dobra nem volta. O trabalho de assessora parlamentar ocupa tempo, não dá espaço. Carol pede tempo, quer mais espaço. A tarde de sábado e a manhã de domingo são preciosas. Juntas em frente à tv, assistem às reportagens sobre superação do Esporte Espetacular que Carol adora. Quebra-cabeça ganha peça. Carol quer ajudar, se entrosa nos afazeres da mãe, do irmão Iago e do pai, Romualdo. Desenhar roupas é passatempo preferido de Carol. A escolha da profissão veio cedo: designer de moda. Outra peça. 

  Tempo é relativo, é gradiente que vai do branco ao preto. Rosa e lilás se encontram suavemente na intensidade de suas cores, bem no meio, formando aspecto 3D: dez anos de intensidade suave de Ana-flor. Tempo é T que transforma, molda, borda. Empoderamento vem junto nessa dança de cores. A militância do antes é a mesma do agora, ganhando linhas adicionais de ponto espiga que delineia memória de Cerrado que não fecha.

  Porta abre, licença, está gravando? Márcia do sorriso e óculos de aro preto entra, quer saber das linhas nos tecidos de ausência presente que vão ser expostas na próxima Feira do Cerrado. No andar de baixo da Associação, onde o sol do fim de tarde e entrevista reflete nos cartazes sobre atividades do Conjunto Caiçara nas paredes da área onde mãos bordam, Márcia, atual diretora comercial da Bordana, fala para palíndromo ouvinte que teve tempo e espaço: algumas histórias aqui são muito diferentes da minha, você não deve me ouvir, ouça a essas histórias. As mãos ouvem, escrevem.          

  Escada, andar, sala, sol a pino de início de tarde. Solanum lycocarpum, Xilopia aromática, Jacaranda sp, Ana-flor. Celma mostra o livro que o marido, Romualdo, teceu depois do dezembro. Contracapa: Palíndromo-flor no meio de um jardim, patins nos pés, estampa das Meninas Super-Poderosas na blusa amarela. Quebra-cabeça, peça. As mãos de Romualdo emitiam alerta de urgência de impulso que emana e necessidade que requer: escreva. O é T de Tinta, de Transformação que Transborda, sai do lado esquerdo direto para o papel branco de ausência presente. Folheio o livro de crônicas sobre o antes, o agora e o depois. Celma aguarda, tempo é constante, é tema presente. O ar se movimenta, Celma fala, Romualdo foi e é parceiro, presente. A venda dos produtos da Natura era uma complementação de renda enquanto a Bordana ainda tomava contorno, complementação que não lograva em adicionar. 


   Sistema tem regras. Tem também exceção. Trabalho faz parte do jogo, mas se abarcasse a todos, porto seria seguro, e não o é. A exclusão do processo produtivo também faz parte das regras, exercendo seu papel de forma inflexível. Celma-mar conta das margens. O jogo tem regras fixas, mas mares têm margens. Até mercado tem trabalho, mas muitas mãos não. Se filho vem cedo, de manhãzinha, Cerrado cerra, oportunidade não dá. Meninas são Super-Poderosas, mulheres também. Outra peça. Empoderamento faz parte das margens. Se jogo não renda, bordado tece e gera renda. “Imagine um lugar em que as mulheres fazem aquilo que amam, que alimenta a alma e o coração, e ainda complementa a renda”. Olho em volta da sala, jardim de flores. Desafio do agora é ser a renda principal.

    O trabalho fora, como assessora parlamentar, era segurança. Mas porto seguro não é mais abrigo, mar desagua no oceano, transborda. Celma é mar de três M’s: mãe, mulher trabalhadora e militante. Enquanto tempo é gradiente de cores, sistema é cor chapada, única. Sistema - substantivo masculino: conjunto das instituições econômicas, morais, políticas de uma sociedade, a que os indivíduos se subordinam. Várias mãos que já passaram pela Bordana também viveram afloramentos. Olhos castanhos se fixam em palíndromo quando falam analogismo e me contam que a superação é uma das principais contribuições que a Bordana proporciona e que faz com que Celma-mar acredite no agora.


As dificuldades existem. Mãos que cooperam margeiam juntas, enfrentam o vento que cria ondas. Donas de casa são também donas do próprio negócio, Cooperativismo dá margem, não cerra. “Olha, a partir de agora, é isso que eu vou fazer”. A frase dita para o marido não foi fácil no antes, não é fácil no agora. Trabalho fora era renda certa, trabalho agora é incerto. Memória fez florescer Bordana, e continua viva e fazendo viver. Ponto correntinha. Faz de linhas em tecido, letras. Há 25 anos, palíndromo ouvinte e escrevente nasceu e casa de Augustinha, melhor amiga da mãe, foi morada provisória durante as primeiras semanas, no Conjunto Caiçara. Celma não é palíndromo, mas também não é não-palíndromo. Por alma e memória. Mãos que desenham, bordam, cooperam, escrevem - por impulso que emana ou necessidade que requer. Quebra-cabeça não se completa porque falta o todo, figura finalizada é memória, não é mais jogo lúdico. “Não sabia que era impossível, por isso fiz”. A frase e o sorriso de Celma encerram o encontro, o sol de tardezinha, mas não fecham porque a memória não deixa.

Universidade Federal de Goiás
Aluna: Anna Carolina Mendes
Disciplina: Jornalismo Literário
Docente: Angelita Lima
Perfil de Celma Grace, criadora da Cooperativa Bordana – Goiânia, Goiás, Conjunto Caiçara

Querida Anna Carolina, quero deixar aqui o meu mais sincero agradecimento, pelo carinho e sensibilidade ao traduzir um pouquinho da nossa história. Lindo demais esse texto, me emociono todas as vezes que leio, quanta habilidade com as palavras, quanta sensibilidade, o jornalismo ganha uma profissional muito especial. Que os anjos continuem iluminando o seu caminhar, seus sonhos e projetos. 
Gratidão por esse lindo presente!! Grande beijo 💞
Celma