... na fina malha do tecido tempo - Edson Quaresma

A linha segue o caminho da agulha e aos poucos, bem devagarzinho, o desenho no pedaço de tecido vai se revelando em cores. Aqui acolá, pode ser que sim, pode ser que não, um outro enfeite qualquer: sementes, tiras metálicas, pedras preciosas, semi-preciosas, miçangas coloridas, lantejoulas. A mão vai escolhendo a trajetória da agulha e fazendo a sua arte.

Quem te inventou?

Fomos todos nós. Ainda me lembro, quando sentados em uma caverna antiga, sempre na beira do fogo, de dia e de noite. Nossas mãos, ainda tão pouco hábeis, furavam um pedaço de pele qualquer, às vezes com um fragmento de osso e em outras com a ponta fina de uma pedra. No mal feito buraquinho, costurávamos nossas roupas com finas tripas de animais ou tiras de fibras vegetais. De repente, neste processo de aprender fazendo ou fazer aprendendo, descobrimos que com o mesmo fio poderíamos contar histórias, ficar mais bonitos, demonstrar nossa força... registrar nossa existência. Fizemos isso há mais de 30 mil anos e neste entrecruzar de linhas já contamos muitas coisas sobre nossas vidas,    bordando na fina malha do tecido do tempo.


Nossa arte percorreu o mundo, ganhou padrões e se aperfeiçoou no oriente médio. Ornou com fios de ouro as vestes de reis, criou heróis e ídolos, deu face a deuses, retratou batalhas, recriou e enfeitou ambientes. Contaram feitos e nossas inúmeras novas histórias. Mas também, deu cores e formas a opressão de etnias, de nações, de pessoas e de gêneros. Assim, a mesma mão que bordava a beleza era, na maioria das vezes, a mesma mão despossuída de direitos, que se protegia da outra mão que espancava. Que se esforçava para ter um pouco de dignidade e, quem sabe, até de identidade.


Em uma época antiga, em tempos médios da nossa história, o ponto cruz da nossa arte era para as mulheres a única escola que lhes permitia aprender, entre outras coisas, as letras do alfabeto. E, ao final dos contornos e enchimento de borboletas, pássaros, flores, casas e paisagens, era ainda “permitido” aparecer a assinatura, a data e às vezes até a idade da bordadeira. No mundo desigual, que trata diferenças como ameaça, se deu cor à luta pela sobrevivência e se bordou o sentido a resistência.


Resistência à hegemonia e eficiência tecnológica dos tempos atuais. Com seus horários precisos, com seus padrões uniformes de produção em série, com seu barulho infernal de máquinas tentando sobrepor ao burburinho confidente da roda de bordadeiras e suas belas irregularidades da forma e do conceito estético.


Ponto e contraponto. A automação e a rotinização imposta pela linguagem binária de softwares codificadores e decodificados por hardwares, cada vez mais específicos e contundentes, em oposição aos sentimentos latentes da expressão e compreensão humana da vida e do mundo. A imposição e opressão das ditaduras modernas camufladas e da pretendida homonimização dos padrões sociais em nichos mercadológicos - comercialmente contemplados - se agiganta na lógica da empregabilidade e uso do poder criativo e tenta conter novas inspirações. Esse mesmo poder que se desfaz em frente a linhas e agulhas nas mãos daquelas que se habituaram a (re)construir, na simplicidade de pequenas e singelas imagens, a liberdade entre as angústias e os prazeres tão humanos.


Além de todo tempo e de toda história, são mãos que insistem e pretendem seguir bordando...


(Colaboração: Edson Quaresma – Fev./2010)

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